A justa homenagem prestada em palco por Adriana Calcanhotto à Gal Costa é recheada de boas escolhas. Do cenário ao repertório, todos os detalhes foram muito bem pensados e contribuem para um espetáculo que, sem dúvida, passaria pela aprovação daquela que foi uma das maiores cantoras da história da música popular brasileira e que nos deixou, precocemente, ano passado.
A começar pelo nome do show, “Coisas Sagradas Permanecem" foi trecho extraído da letra de “Recanto Escuro”, escrita por Caetano Veloso e gravada pela eterna tropicalista no disco Recanto em 2011. A áurea da artista baiana ressoava pelos quatro cantos do palco numa produção carregada de simbolismo e embalada pela voz cristalina e pelo talento de Adriana Calcanhotto que fez do show um grande culto à obra de Gal.
A idealização do espetáculo é de Marcus Preto, que foi produtor e diretor artístico de Gal nos últimos nove anos. Segundo Marcus, a acertada escolha por Adriana Calcanhotto diz respeito a lugares que ambas as artistas alcançaram na música brasileira, tateando vanguarda e poesia, mas também atingindo camadas pop-radiofônicas. Além disso, Gal e Calcanhotto compartilharam de prestígio mútuo o que foi endossado pela escolha do repertório.
A banda que acompanha Adriana nessa jornada é a mesma que esteve com Gal nos últimos shows em Belo Horizonte no Breve Festival (em 9 de abril) e no Palácio das Artes (em 3 de junho): Limma (teclados), Fabio Sá (baixo) e Vitor Cabral (bateria e percussões), além de Pedro Sá (guitarra e violão). Sob cenário provocante de Omar Salomão, filho do poeta Waly Salomão, o quarteto protagonizou grandes momentos interpretando de jazz a rocks enérgicos que arrancaram efusivos aplausos do público.
O show aconteceu no Minascentro, tradicional espaço que abriga grandes eventos e que tem recebido nos últimos anos, grandes mestres da MPB como Chico Buarque e Maria Bethânia. A casa estava com lotação máxima para o show que teve convidados ilustres como é o caso do poeta gaúcho Fabrício Carpinejar.
“Eu conheço a Adriana Calcanhotto desde o [bar] Porto de Elis, ou seja, desde que ela começou a tocar e cantar em Porto Alegre. Ela é essencialmente uma poeta. É uma poeta natitude. É uma poeta na criação de silêncios. Na provocação para renovar a língua portuguesa. Ela não chega a ser conceitual… ela é mais passional do que a gente imagina. Ela sofre cantando”, descreveu Carpinejar.
Perguntamos sobre o repertório em homenagem a Gal.
“Eu diria que é o encontro de um gêiser com um vulcão. É erupção. É à flor da pele. Uma homenagem mais que justa e sincera à Gal e não poderia ser outra artista [se não Adriana Calcanhotto] capaz de fazer isso. [Gal Costa] é aquele solo sagrado. Quando a gente sabe que estamos lidando como matéria imperecível. Só vai ficar melhor com o tempo. E com Adriana fica delicioso”.
Performática e muito a vontade, Adriana Calcanhotto abriu o show empunhando uma panela na altura dos ouvidos para cantar “Recanto Escuro”. Uma referência à origem de Gal que, durante a infância, exercitava a voz cantando com a cabeça dentro da panela que a mãe usava para preparar feijoada. E da panela de Gal vieram logo os primeiros sucessos “Baby”, “Meu Nome é Gal” e “Caras e Bocas” (Caetano/Bethânia).
A fase Doces Bárbaros foi lembrada com “Quando”, música que também tece homenagem à rainha do rock Rita Lee, que nos deixaria dias após o show. De Estratosférica (2015), o hit “Quando Você Olha pra Ela”, composição de Mallu Magalhães dava a tônica de um repertório que também privilegiou de forma contundente as vozes femininas.
A clássica “Folhetim” abriu o set romântico e contou com boa parte do público cantando junto. Na sequência, a intensa “Volta”, composição de Lupicínio Rodrigues que também marca a interseção entre as intérpretes. Ambas prestaram homenagem ao compositor gaúcho em suas respectivas carreiras. Adriana admite que foi com a versão de Gal em Índia (1973), que a obra de Lupicínio lhe foi revelada efetivamente. “Só Louco” (Dorival Caymmi), “Tema de Amor de Gabriela” (Tom Jobim) e “Nuvem Negra” (1993) rechearam o set.
Inaugurando momento jazzy, “Solitude” (Duke Ellington) foi um convite para Adriana Calcanhotto ocupar a poltrona vermelha que decorava o ambiente. Durante o número de “The Laziest Gal In Town” (Cole Porter, 1940), Adriana se entregou à preguiça, no melhor sentido, e performou deitada ao estilo Marlene Dietrich.
Calcanhotto se pôs de pé para um dos grandes momentos do show: a interpretação da guarânia “Índia” (José Fortuna, 1952). De volta à chaise, Adriana cometeu a gentileza de agradecer o empréstimo da poltrona por Dona Fátima. Também chamou atenção para a presença do banquinho de madeira que compõe o cenário. Banco este que é item da coleção particular de uma fã que tem viajado a turnê levando o item. O objeto é notório por ter sido usado nas gravações do antológico Gal Fa-Fal.
Antes de cantar e tocar ao violão “Sim, Foi Você”, Adriana Calcanhotto contou que o próprio Caetano ensinou a canção a Gal assim que se conheceram. Ainda ao violão, tocou “Hoje” (Moreno Veloso), que batiza o disco de Gal de 2005 e “Livre do Amor”.
Ao anunciar uma canção sua que Gal havia gravado, a plateia já sabia o que esperar. As primeiras notas de “Esquadros” ainda soavam quando o público aplaudiu o hit do disco Senhas de 1992 que foi regravado em Aquele Frevo Axé (1998).
O show já se encaminhava para o final e “Negro Amor” (versão de “It’s All Over Now, Baby Clue”, Dylan) foi responsável por levantar os ânimos e incentivar a marcação das palmas. Durante o blues, Adriana ainda se aventurou a um solo de gaita que provocou aplausos. O hino “Vapor Barato” segurou o clima intenso que foi enaltecido por uma jam empolgadíssima da banda, que arrancou gritos das poltronas do teatro.
A partir do medley “Oração de Mãe Menininha / É D'Oxum” o público já inquieto se aproximou do palco e foi impossível conter a vontade de dançar ao ritmo do ijexá. Adriana incentivava a invasão da parte frontal do palco quando apresentou o frevo “Bloco do Prazer” que precedia o fim do show. O bis ficou a cargo das indispensáveis “Um Dia de Domingo” e “Dê um Rolê”, que contou com ousada performance de Adriana deixando seios à mostra e que tem sido marca registrada da turnê.
Adriana Calcanhotto, musa da música brasileira contemporânea, nos presenteou com um espetáculo inesquecível, onde sua voz foi a melhor ponte possível ao universo sonoro de Gal Costa. Com sutileza e propriedade, ela teceu os fios da melodia e da emoção, conduzindo-nos por um caminho de memórias afetivas e sonoridades atemporais. Tudo se harmonizava, num ritual em que sagrado e profano se entrelaçavam em perfeita sinfonia.
Foi um encontro de almas, um mergulho na essência da música brasileira e um testemunho vivo de que a arte é capaz de tocar o divino dentro de nós. A voz de Adriana Calcanhotto entrelaçada às canções de Gal Costa nos lembra que, mesmo em um mundo em constante mudança, as coisas sagradas, como a música, permanecem como faróis de inspiração e transcendência.
Avaliação Final
O show Gal: Coisas Sagradas Permanecem entrega exatamente o que se espera. Como dito, foi pensando em detalhes para prestar uma grande homenagem à obra de Gal Costa. Adriana Calcanhotto provou porque é uma das vozes mais relevantes da atual cena da MPB e conseguiu conectar o público às nuances transgressoras e emocionantes que o desafiador repertório apresenta.
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