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Fórum da Música de BH: retomada política e organização para além do palco

Minas Gerais ocupa um lugar singular no cenário cultural, sendo o berço histórico do Clube da Esquina e, simultaneamente, um polo vibrante de rap, samba, funk e música instrumental, uma diversidade que sustenta a relevância da retomada do Fórum da Música de BH. Apoiada em um histórico sólido de articulação entre sociedade civil e poder público, essa mobilização se alicerça no êxito de políticas passadas que provaram a capacidade do estado de exportar cultura e estruturar sua cadeia produtiva, deixando um legado de profissionalização fundamental para esta nova fase.


O cenário contemporâneo apresenta um horizonte de renovação, exigindo que o setor adapte suas estratégias de gestão às novas dinâmicas de produção e consumo cultural. O encontro presencial realizado nos dias 26 e 27 de novembro, na sede da Família de Rua, Conservatório UFMG e Ototoi, reforçou a maturidade política da classe, que busca transformar diagnósticos em propostas concretas para o futuro.


Neste contexto, o diálogo com a gestão municipal serve como ponto de partida para a construção de políticas de Estado que fortaleçam toda a cadeia produtiva. O objetivo final dessa mobilização é garantir que a música se mantenha como um direito essencial, ampliando o acesso e a diversidade cultural para o seu maior beneficiário: a população de Belo Horizonte.


Diante de um cenário onde a produção artística sobra, mas a sustentabilidade falta, o evento buscou alinhar expectativas para 2026. Confira as principais discussões que buscaram desenhar um novo horizonte para a cadeia produtiva da cidade.


Texto e fotos: Alexandre Biciati



O Esgotamento do Modelo de Editais


Sob a provocação do tema "A política de editais é suficiente para atender a demanda do setor musical?", a mesa mediada por Bruno Golgher reuniu Rômulo Avelar, Bárbara Bof (Fundação Municipal de Cultura), Negah Thé e Polly Honorato para um diagnóstico franco sobre o financiamento cultural. O debate girou em torno da saturação dos certames atuais, da crise das instituições de médio porte, das barreiras burocráticas enfrentadas pela periferia e da necessidade de diversificação das fontes de recursos.


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A discussão encarou o "elefante na sala" da cultura municipal: a insuficiência da política de editais. Embora reconhecidos como ferramentas vitais de transparência e democratização, os mecanismos já não comportam a explosão de demanda do setor. O debate evidenciou um gargalo crítico na "faixa intermediária" da produção. Enquanto leis como a PNAB irrigam a base e o mercado absorve o topo, grupos com décadas de trajetória e custos fixos enfrentam o risco real de asfixia financeira, vivendo da incerteza de concursos anuais que operam como loteria.


"Você já ativou sua padaria de projetos? Gente, é projeto todo dia. (...) Quem no seu grupo, no seu coletivo, na sua carreira, cuida da padaria de projetos?" Rômulo Avelar

Para além da questão numérica, o debate iluminou como a burocracia atua como filtro excludente. Negah Thé e Polly Honorato convergiram ao apontar que a democratização do recurso exige, antes, a democratização do conhecimento técnico e o reconhecimento das culturas de rua, citando o Ponto de Cultura Oca Ilê como exemplo de infraestrutura vital. O tom político se elevou com as intervenções da artista e produtora Letícia Fox e do conselheiro Neném Godoy, que reivindicaram que a cultura periférica saia "do fundo da sala" para disputar o orçamento da cidade com a mesma seriedade de outras pastas.


Letícia Fox, produtura cultural
Letícia Fox, produtura cultural
"O edital funciona pela lógica da justificativa e a arte, às vezes, não tem justificativa. (…) a justificativa pra gente que faz é muito mais profunda e é uma justificativa que não vai pegar o parecerista.” Letícia Fox

Polly Honorato, Rômulo Avelar e Bárbara Bof
Polly Honorato, Rômulo Avelar e Bárbara Bof
"Belo Horizonte tem hoje 284 pontos de cultura. Tem mais Ponto de Cultura do que [farmácia] Araujo." Gustavo Bones

Para superar a dependência exclusiva dos editais, o painel desenhou estratégias concretas que vão da base à gestão pública. O consenso reside na urgência da formação continuada: enquanto Negah Thé e Polly Honorato destacaram a capacitação técnica para que agentes da periferia acessem os recursos, Rômulo Avelar defendeu a profissionalização da captação. A saída exige, portanto, abandonar o individualismo em prol do trabalho em rede e de uma articulação política mais incisiva junto ao Legislativo. Em resposta, a Fundação Municipal de Cultura, através de Bárbara Bof, sinalizou mudanças estruturais importantes, como o fortalecimento dos Pontos de Cultura e a transição do fomento pontual de eventos para planos anuais de trabalho, visando garantir a estabilidade e a continuidade que a classe artística reivindica.


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Um Plano de Estado para a Circulação


Com foco na estratégia de mobilidade artística, a roda "Música Minas BH" foi conduzida por Lucas Mortimer e trouxe a Secretária Municipal de Cultura, Eliane Parreiras, e a diretora Paula Senna para dialogar com as lideranças Michele Ferreira (Assessoria da Vereadora Cida Falabella) e Fred Nogueira (Negro F). Os principais tópicos abordados incluíram a criação de um Plano Setorial da Música, a retomada de políticas de circulação para 2026, as limitações legais do antigo modelo de balcão e a urgência da ocupação dos espaços políticos deliberativos.


Eliane Parreiras, Secretária Municipal de Cultura de Belo Horizonte
Eliane Parreiras, Secretária Municipal de Cultura de Belo Horizonte

Se os editais de produção estão saturados, a circulação surge como a pauta estratégica para o futuro próximo. A mesa desenhou a retomada de uma política de mobilidade para a música de BH, com a meta ambiciosa de implementar o programa municipal em 2026. A presença da gestão pública elevou o tom do debate, deslocando o foco de ações pontuais para a necessidade de um Plano Setorial. A defesa é por uma política de Estado, com metas monitoráveis e segurança jurídica, capaz de blindar as conquistas do setor contra as oscilações e descontinuidades típicas das trocas de governo.


"Precisamos construir um plano setorial para que a política não dependa da boa vontade de quem está sentado na cadeira do gestor, mas que seja uma política de Estado com metas monitoráveis." Eliane Parreiras

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"A galera reclama muito na rede social, faz textão, mas na hora de ocupar a cadeira no Conselho Municipal de Política Cultural, a cadeira fica vazia. A gente precisa sair da internet e ocupar o espaço onde a decisão é tomada." Fred Negro F

Letícia Fox, Negro F e Lucas Mortimer
Letícia Fox, Negro F e Lucas Mortimer

Superando as limitações legais do antigo modelo de balcão, o debate apontou para um pacto de estratégia dupla: a implementação imediata de uma ação ou programa piloto de circulação já em 2026 e a construção simultânea do Plano Setorial da Música para garantir o longo prazo. Para dar sustentação política a essas metas, a mesa definiu a necessidade de ampliar a articulação, integrando o Fórum de BH ao Fórum Estadual — visando a retomada do Música Minas — e estabelecendo diálogos transversais com outros setores, como o hip hop, a dança e o teatro. O chamado final foi uma convocação à mobilização: para que o orçamento seja disputado de fato, o setor musical precisa ocupar massivamente a Conferência Municipal de Cultura, inscrevendo suas demandas no planejamento oficial da cidade.


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A Urgência da Profissionalização Técnica


No debate "A Graxa em BH", também mediado por Lucas Mortimer, os profissionais Alan Rasta, Felipe Amaral, Flora Guerra, Pat Manoese e o gestor Nilson de Oliveira (Fundação Municipal de Cultura) expuseram as fragilidades dos bastidores. A conversa pautou a invisibilidade histórica dos técnicos, a falta de regulamentação profissional, a precariedade da formação, os erros recorrentes no orçamento de projetos e a necessidade de pisos salariais.


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A realidade da "graxa" (profissionais de sonorização e montagem) expôs a face mais precária da cadeia produtiva. O debate no Conservatório da UFMG revelou que a invisibilidade desses trabalhadores resulta em desvalorização financeira e relações trabalhistas marcadas pela informalidade. Sem um Código Brasileiro de Ocupação (CBO) específico, a categoria carece de reconhecimento oficial, o que impede a criação de pisos salariais, planos de carreira e até mesmo a realização de concursos públicos para equipar os centros culturais da cidade com mão de obra qualificada.


"A valorização da graxa começa quando o setor entende que trabalha, diariamente, dentro de políticas públicas e precisa ser reconhecido como parte delas." Nilson de Oliveira

Nilson de Oliveira e Pat Manoese
Nilson de Oliveira e Pat Manoese

Flora Guerra e outros participantes destacaram que a modernização do setor passa obrigatoriamente pela inclusão, com ações intencionais para inserir mulheres e pessoas não binárias em um ambiente de trabalho historicamente masculino, garantindo segurança e condições para que se possa envelhecer na profissão.


"Sem formação estruturada e contínua, a técnica segue presa à informalidade e à desvalorização que atravessa toda a cadeia." Felipe Amaral

Para romper o ciclo de amadorismo e precarização, o debate avançou em direção a soluções estruturais que unem formação, regulação e diversidade. A proposta central para garantir dignidade financeira foi a obrigatoriedade de pisos salariais em todos os projetos financiados por editais públicos, impedindo que o fomento estatal alimente a desvalorização. Simultaneamente, sugeriu-se que a máquina pública e os próprios festivais financiem a capacitação técnica por meio de oficinas remuneradas ministradas pelos veteranos da cidade. A profissionalização exige ainda a definição clara de cargos e funções, inspirada nos modelos do audiovisual, e a organização política da categoria em uma associação forte para lutar pelo reconhecimento junto ao Ministério do Trabalho e utilizar o Mapa Cultural BH como ferramenta de visibilidade.


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Iluminação como Linguagem e Direito


Já o encontro "A Cena da Luz", com mediação de Eliezer Sampaio (Lili), convocou Allan Calisto, Cristiano Araújo, Juliana Flores e Zildo Flores para debater a iluminação sob uma ótica política e estética. A pauta atravessou questões como o reconhecimento da luz como linguagem artística, a tensão entre "pejotização" e direitos trabalhistas (CLT), a segurança no trabalho e a importância do mapeamento da categoria.


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A roda reivindicou o status de linguagem artística para a iluminação, rejeitando o rótulo de serviço acessório. A discussão aprofundou a crítica à divisão histórica entre "pensadores" e "executores", defendendo que iluminadores são cocriadores fundamentais na construção de atmosferas e sentidos da obra. No entanto, essa relevância estética colide com a precariedade das condições de trabalho, marcadas por riscos físicos, longas jornadas e ausência de amparo legal em casos de acidentes, agravada pela "pejotização" desenfreada que mascara a perda de direitos básicos.


"A iluminação precisa ser reconhecida como parte da criação artística e não como um serviço acessório." Cristiano Araújo

Eliezer Sampaio e Allan Calisto
Eliezer Sampaio e Allan Calisto
"Mapear a categoria através de dados e leis de incentivo é o primeiro passo para construir políticas públicas consistentes." Eliezer Sampaio (Lili)

O grupo debateu a necessidade de contratos formais que garantam segurança jurídica e cobrou uma postura mais ativa e representativa de sindicatos como o SATED-MG na negociação de tabelas. Inspirados por conquistas no Ceará e pela mobilização no eixo Rio-SP, os participantes defenderam o mapeamento da classe e a aprovação da Lei Dona Naná como ferramentas para garantir a presença técnica nos editais. Na formação, o consenso foi que a formação deve equilibrar o saber acadêmico com a vivência prática dos mestres, evitando que o diploma se torne uma barreira de exclusão. O encontro culminou na decisão de redigir uma carta de reivindicações a ser levada ao Conselho Municipal de Cultura, visando converter essas demandas em políticas públicas de Estado permanentes.


Cristiano Araújo, Zildo Flores e  Juliana Flores
Cristiano Araújo, Zildo Flores e  Juliana Flores

O Fim do Amadorismo Romântico


Retomando a mediação de Bruno Golgher, a roda "Melhores Práticas na Gestão Cultural" contou com a experiência de Luciana Salles e Gustavo Zubreu para analisar a profissionalização do setor. Os temas centrais envolveram a importância do planejamento estratégico, a diversificação de receitas, a leitura inteligente de editais e a articulação em rede como sobrevivência.


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A gestão cultural foi dissecada sob a ótica do profissionalismo, rompendo com a "romantização do perrengue" que historicamente permeou a produção independente. A mesa foi taxativa: o sofrimento operacional e o estresse de equipe não são medalhas de honra, mas falhas de planejamento. Recuperando a memória do boom da música nos anos 2000, o debate mostrou que o setor evoluiu do foco no produto físico (o CD que sobrava em caixas) para a gestão de carreira e cadeia produtiva. A sustentabilidade agora exige domínio das métricas, diversificação de receitas e entendimento técnico das leis de incentivo.


"Não adianta ter um Plano Nacional de Cultura se ele não for um documento pactuado entre todos nós e se as empresas patrocinadoras não o legitimarem em suas diretrizes." Luciana Salles

Lucas Mortimer
Lucas Mortimer

O debate também enfrentou as contradições do financiamento atual, sugerindo que a dependência dos departamentos de marketing deve dar lugar a estruturas de Estado mais robustas. A proposta ousada mira um modelo semelhante ao da Ancine: a criação de uma Agência Nacional da Música e de um fundo setorial, alimentado inclusive pela taxação das plataformas digitais. Luciana Salles alertou que a gestão hoje exige entender a música como produto visual e combater a opacidade dos streamings.


"Existe uma romantização da produção aos trancos e barrancos que é horrorosa. O resultado final pode até sair, mas sai com a equipe estressada e desorganizada, o que reflete uma falha de planejamento." Zubreu

Luciana Salles
Luciana Salles

No campo político, o cenário desenhado foi de contraste: enquanto a gestão estadual de Romeu Zema foi criticada pelo desmonte de programas, a abertura ao diálogo na esfera municipal permite propor inovações. Contudo, o conselheiro Neném Godoy trouxe um choque de realidade ao debate, alertando que, diante de um orçamento municipal "ínfimo", é preciso fortalecer o plano setorial e garantir recursos locais antes de pleitear a expansão de grandes programas. O encaminhamento prático reforçou essa cautela, definindo que o Fórum da Música deve ocupar os conselhos e mapear dados históricos para embasar esse Plano Setorial, desenvolvendo estratégia e ocupação política sólida.


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Comunicar para Pertencer e Mobilizar


Por fim, a mesa "Comunicação em Cultura", mediada pelo jornalista Francesco Napoli, reuniu Carol Braga (Culturadoria), Flávia Moreira (Rádio Confidência), Thiago Romano (Assessor de Imprensa) para repensar como a música dialoga com a sociedade. O debate explorou a construção de comunidades internas, as mudanças drásticas no consumo de mídia, a necessidade de estratégias híbridas (online/offline) e a crise dos modelos de patrocínio baseados apenas em visibilidade de marca.


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A comunicação foi tratada não como ferramenta de venda, mas como estratégia de mobilização comunitária. O diagnóstico é que o modelo de tentar falar com "todos ao mesmo tempo" falhou. A prioridade agora é a gestão de comunidades internas, fortalecendo o senso de pertencimento entre os próprios agentes culturais ("a bolha dentro da bolha") antes de tentar furar o bloqueio do grande público. Em tempos de atenção fragmentada, a mensagem do Fórum precisa ser unívoca e focada em benefícios coletivos para não se perder no ruído digital.


"É preciso trabalhar muito mais o pertencimento das pessoas que fazem parte dessa comunidade interna do que apenas a transmissão de informação; os encontros e as experiências são o que fortalecem a cena num primeiro momento." Carol Braga

Carol Braga, Thiago Romano e Flávia Moreira
Carol Braga, Thiago Romano e Flávia Moreira
"Se a gente colocar pautas demais, a comunicação se dispersa e ninguém capta nada; é fundamental ter uma lista de prioridades clara e objetiva para que a sociedade entenda o que o Fórum está reivindicando." Flávia Moreira

A discussão desmistificou a dependência exclusiva das redes sociais, defendendo uma abordagem híbrida que valorize a credibilidade da mídia tradicional e a presença física no território. O debate também tocou na crise ética do marketing cultural, onde projetos de formação crítica lutam para se vender a patrocinadores que buscam apenas visibilidade numérica. O saldo aponta para um reset necessário no modelo de financiamento e comunicação: menos foco em métricas de vaidade e mais esforço na construção de uma narrativa política sólida que legitime a disputa por orçamento público.


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A Arte como Serviço e a Força do Coletivo


Mais do que uma reivindicação corporativa, o Fórum da Música de BH reafirmou a arte como um bem essencial e um direito do cidadão. O entendimento de que o público é o grande beneficiário final — e a razão de ser de toda a engrenagem cultural — norteou o espírito de cada debate, situando este reencontro não apenas como uma demanda por recursos, mas como um compromisso com a cidade. Essa visão serviu de amálgama para a união histórica de uma cadeia produtiva vasta e complexa, que decidiu caminhar no mesmo compasso em torno de um propósito comum.


O saldo mais valioso deste momento político foi a interdependência reconhecida e celebrada. Músicos, técnicos de som e luz, produtores, gestores de entidades, representantes do poder público e demais atores da cena abandonaram a fragmentação para construir propostas sólidas e coerentes. A disponibilidade e o engajamento demonstrados durante os dois dias provam que a classe está pronta para transformar o diálogo em ação coletiva oportuna. Ao alinhar as expectativas de quem sobe ao palco com as necessidades de quem opera a graxa e de quem desenha a gestão, o Fórum sinaliza que a música em Belo Horizonte está preparada para deixar de ser apenas uma soma de talentos individuais para se tornar uma força política uníssona, organizada e imprescindível.



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