INTRO
Antes de mais nada, quero fazer um convite: coloque o fone de ouvido que estiver à mão e escute comigo “Rotomusic do Liquidificapum”, faixa-título que abre o primeiro disco do Pato Fu. Trata-se de um mashup dividido em três partes. Vamos voltar a 1993, quando boa parte do mercado teve o primeiro contato com a banda através do disco com capa de padrão minimalista. Play!
Nos primeiros trinta segundos da primeira parte, a.k.a. “Aerosmiths”, ouvimos uma batida frenética e distorções, muito comuns ao rock da época, fazendo acreditar que se trata de uma banda de punk-metal. Tudo muda com a desaceleração do andamento ainda no segundo minuto, mas o rock volta imediatamente com John Ulhoa cantando em inglês sobre marcação com ares de Queen e Faith No More: “It's time to make my mind / Live or die”! Antes que você se acostume com o ritmo divertidamente dançante que precede o refrão com backing feminino, o rock dá as caras de novo e vai alternando com o pop e você já não sabe quem vai vencer essa briga. A primeira parte ainda tem a citação de “I Love It Loud” do Kiss (!) e um ensaio rap. A transição para a segunda parte termina com a repetição da intro, como toda boa ópera rock.
A melódica canção de ninar (plimplimplim…) que abre “Hoji” (4:44) vira fundo bizarro para uma letra nada fofinha cantada por Fernanda Takai: “O espírito fatal e a psicose da morte está no ar”. Já na terceira parte, nomeada “É Natal” (5:46), a agressividade power-chord-metal entra em cena abrindo caminho para um verso abusado cantado em conjunto. A música ainda termina com um bônus: uma inusitada versão do tema do desenho animado The Flintstones (!) que conta com vocal caricato.
Por mais estranha que possa soar essa profusão experimental que mistura ironia, sarcasmo, sintetizadores, cultura pop e 128 japoneses devidamente programados, estão ali todas as sementes que reconhecemos com olhar retroativo aos 30 anos da banda Pato Fu: antropofagia sonora, letras criativas, produção sólida e originalidade.
ROTORQUESTRA
Batizado espirituosamente de “Rotorquestra de Liquidificafu”, o show que celebra as três décadas do Pato Fu, como sugere o nome, conta com a luxuosa participação da Orquestra Ouro Preto, regida pelo maestro Rodrigo Toffolo, fã assumido da banda. A orquestra não só conferiu rica camada sonora às canções, como permitiu a execução de composições mais elaboradas do repertório.
Além do trio original - Fernanda Takai, John Ulhoa e Ricardo Koctus - a formação contou com Xande Tamietti na bateria, que voltou à banda após oito anos afastado das baquetas do Pato Fu, além do tecladista Richard Neves, que entrou na banda em 2016 no lugar de Lulu Camargo.
Antes de Belo Horizonte, o show percorreu as cidades de Brumadinho, Sabará, Nova Lima, Caeté e Santa Bárbara. O local escolhido na capital foi a Praça da Liberdade, cartão postal na região Centro-Sul. O evento foi gratuito e contou com um palco montado em frente ao imponente Palácio da Liberdade. Desta vez, a produção preferiu dispensar o fundo de palco com a identidade do show e a arquitetura do Palácio funcionou como cenário.
Visando democratizar o acesso à música, também compôs o espetáculo o intérprete de libras Jonnathan, que chamou atenção pela sensibilidade com que transmitiu o show para a atenta plateia que contou também com espaço reservado para pessoas com deficiência e idosos.
Com a praça lotada e expectativa às alturas, a banda subiu ao palco acompanhada pela orquestra e logo destacou a dificuldade em escolher o repertório que contemplou dezoito músicas de um total de doze discos lançados, incluindo um ao vivo e duas edições do Música de Brinquedo.
LIQUIDIFICAFU
Se ao final do MTV ao vivo, John Ulhoa anuncia a saideira com: “vamos acabar como tudo começou”, referindo-se à “Rotomusic do Liquidificapum”, desta feita, a música funcionou como tema de abertura. E soou simplesmente apoteótica, revelando o potencial do arranjo orquestral e aumentando a expectativa do que estava por vir.
A clássica “Antes Que Seja Tarde” do premiado Televisão de Cachorro - disco de ouro em 1998 - motivou o coro de uma plateia nitidamente deslumbrada com os primeiros números. O show seguiu com “Eu” do álbum Ruído Rosa (2001), um dos mais contemplados da noite, e era possível perceber que, não só público, mas também os músicos da orquestra se divertiam cantarolando durante a execução de cada música e distribuindo sorrisos.
Fernanda Takai anunciou “Made in Japan” (Isopor, 1999) e brincou com o fato da letra em japonês ser recitada por conhecedores para fingir domínio do idioma. E, sim, na grade tinha muita gente cantando em japonês fluente. O tema da novela O Beijo do Vampiro, “Por Perto”, registrada no MTV ao vivo, ganhou asas com o arranjo de cordas e emocionou o público presente.
A balada “Perdendo os Dentes” (Trilha em Laços de Família, 1999) manteve o clima introspectivo ao lado de “A Hora da Estrela” (Daqui pro Futuro, 2007), ambas também muito privilegiadas pela camada orquestral. Gravada em 2001 em Ruído Rosa, “Ando Meio Desligado” (Mutantes), tema de abertura de Um Anjo Caiu do Céu, é recorrente em shows do Pato Fu, mas ganhou novo teor com a morte de Rita Lee e foi muito bem-vinda. A dobradinha de Ruído Rosa veio com “Ninguém” logo na sequência.
Fernanda Takai dedicou “Simplicidade” (Toda Cura Para Todo Mal, 2005) a Dona Nelsa Trombino, fundadora de tradicional restaurante na Pampulha, falecida recentemente. “Somos vizinhos do Xapuri e essa é a música nossa que ela mais gostava”, explicou ressaltando a amizade. A homenagem se estendeu naturalmente com “Canção Para Você Viver Mais” (Televisão de Cachorro, 1998), outra música emblemática e esperada pelos fãs. O show caminhava para o final, mas o setlist ainda traria algumas surpresas. Do disco Toda Cura também contemplaram “Sorte e Azar” (John Ulhoa e Ricardo Koctus), outra beneficiada pelas cordas, que contrastaria com “Eu Sou o Umbigo do Mundo”, segunda faixa da fita demo gravada em 92. “O nome da fita ficou Pato Fu Demo, mas o trocadilho não foi intencional”, brincou Ricardo Koctus sobre a cacofonia.
Takai avisou que tocariam uma inédita, a versão de John para “Lo Che Amo Solo Te” (Sergio Endrigo) que virou “Amo Só Você” gravada no recém-lançado e comemorativo 30 (2023). John lembrou que a música original foi trilha da novela… (ops, quase erra!) Anjo Mau. Daí pra frente a festa foi um revival de grandes sucessos.
Durante a pausa para apresentar a banda, com enorme carisma e simpatia, como é de costume, Fernanda Takai disse reconhecer que, apesar de não ter nascido em Belo Horizonte (ela nasceu em Serra do Navio, AP), sabe que é uma representante da música mineira e que lida com isso com gratidão e responsabilidade. A plateia retribuiu com aplausos, endossando a chancela.
O set final começou com a inusitada “Água”, única do excelente Tem Mas Acabou (1996), que agradou os fãs mais exigentes (aqueles mesmos que pedem pra tocar “Pinga”!). Na voz de Takai, a pop “Depois” (1999) garantiu o coro do refrão. O bis veio com duas canções do segundo disco, Gol de Quem? (1995): “Spoc” e a radiofônica “Sobre o Tempo”, cantada com entusiasmo pela plateia.
SOBRE O TEMPO
O Pato Fu sempre cuidou muito bem da carreira, mas nunca abriu mão de suas convicções artísticas, evoluindo naturalmente ao longo das últimas três décadas, desafiando o próprio mercado e se aventurando positivamente por terrenos entre o pop e o underground. São essas bem-aventuradas experimentações que dão um tempero muito especial à discografia do Pato Fu.
Fundados em uma época, como dito, em que o acesso às gravadoras era um enorme desafio e, para além do indiscutível talento, bagagem e criatividade dos integrantes, a banda prova, a cada projeto, os resultados que a boa gestão e a autonomia técnica tiveram na trajetória. Revivendo a louvável trajetória recheada por grandes discos, videoclipes, presença digital, Grammy Latino, fã-clubes e muitas horas de palco, só podemos dizer que, indiscutivelmente, o tempo continua sendo muito legal com o Pato Fu.
AVALIAÇÃO FINAL
A escolha por celebrar os 30 anos em um show com orquestra não poderia ter sido mais acertada. A cereja do bolo foi a presença da Orquestra Ouro Preto que, com méritos ao maestro, fez o encontro soar íntimo. A decisão de fazer o show em espaço aberto no coração da cidade, com o Palácio da Liberdade como cenário, conferiu teor representativo e cada detalhe pensado para privilegiar o público fez diferença ao resultado do grande espetáculo. Com repertório que costurou muito bem a trajetória e performance impecável, só ficou o desejo de ouvir mais músicas que dizem respeito a preferências pessoais.
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