Contabilizando um público aquém do esperado, a décima edição do festival Sarará, realizada na Esplanada do Mineirão, abrigou três palcos por onde passaram 26 atrações durante mais de 11 horas de música. Os shows mais aguardados foram da cantora Marisa Monte com participação de Arnaldo Antunes; Urias com participação de Paige e Ebony; Rubel, com participação de Mc Carol e Johnny Hooker, que prestou homenagem à Marília Mendonça. Timbalada, Kaike, Julia Mestre, Fat Family, Jorge Aragão e Lagum completaram o time dos palcos gêmeos que revezaram os artistas principais.

Desafios Enfrentados
O evento foi marcado, porém, por infortúnios de toda ordem que explicitaram quão frágil pode ser a realização de um festival de grandes proporções. A exemplo do fatídico Doce Maravilha, realizado no Rio de Janeiro (12 e 13 de agosto), que não conseguiu administrar a tragédia causada por um dilúvio, o Sarará pecou em não entregar o básico: segurança. Não bastassem as falhas técnicas e desorganização difíceis de esconder, uma pancada de chuva, revelou vulnerabilidades e causou outros problemas que impactaram negativamente na experiência do público e nas apresentações musicais.

Com um lineup enxuto e o anúncio de segurança reforçada, a organização parecia saber o que esperar. Infelizmente, as investidas não foram suficientes e, a exemplo da edição anterior, o evento sofreu com a prática deliberada de furtos de celulares. O agravante ficou a cargo dos danos provocados pela intempérie que, acima de tudo, atrasou a programação. Com inúmeros relatos de roubo e arrastões (!), acidentes por queda, falta de abrigo e demais riscos à integridade que presenciamos, reclamações com o transporte oferecido pelo evento ou a temperatura da bebida comercializada soaram triviais.
No âmbito da gestão de tempo, apesar de todos os eventos relatados, a organização conseguiu driblar as falhas técnicas e mantiveram a pipa no ar. Se considerarmos que os palcos chegaram a ser completamente desligados durante a chuva, o atraso final não foi considerável.

Atrações
O Sarará 2023 teve início com um cortejo que reuniu Timbalada e os blocos carnavalescos Angola Janga, Então, Brilha! e Juventude Bronzeada. O carnaval de Salvador, representado pela Timbalada, abriu os trabalhos em um dos palcos principais instalados lado a lado, formato já tradicional que favorece o intercâmbio da programação principal.

O primeiro desfalque sentido no evento foi a ausência de Rico Dalasam que teve problemas com o voo. Em decisão mais que acertada, Kaike, que faria participação no show do queer rapper, assumiu o palco com seu próprio show. Kaike, que tem se destacado na cena local como um talento prodigioso que transpira emoção em performances cheias de movimento e sensibilidade, cumpriu com louvor a missão em mais um passo importante da promissora carreira.
Assim como tem acontecido em vários festivais, Rita Lee também foi lembrada e homenageada durante o Sarará. Desde feita, foi a vez de Julia Mestre apresentar seu show interpretando os sucessos de Rita, declaradamente, sua grande influência artística. O show privilegiou hits radiofônicos como “Chega Mais”, a delicada “Menino Bonito”, a obrigatória “Agora Só Falta Você” e o hino “Ovelha Negra”, última de um set que encantou o público.
Impactados com o atraso de uma hora provocado por falha no gerador do palco, Johnny Hooker e banda foram recebidos com ovação. A plateia, muito ansiosa, cantou os sucessos de Marília Mendonça, mas também grandes números de Johnny como “Volta” e “Amor Marginal”. A sinergia entre o artista e público foi o combustível para que o show ganhasse energia. Batizado de Clube da Sofrência, o show foi uma viagem aos prazeres e dores do amor em seu sentido mais visceral e ninguém melhor que Johnny Hooker para conduzir esse inebriante passeio.

Formado pelo trio de irmãs Simone, Suzete e Kátia Cipriano, o Fat Family - que ficou nacionalmente conhecido após inúmeras aparições na TV no final dos anos 90 e cuja carreira inclinou para a música gospel - fez um show de celebração de 25 anos animado e recheado de hits que ainda soam amigáveis. Com destaque para a qualidade vocal das três irmãs, não faltou carisma em mensagens dirigidas aos fãs que dançaram e coreografaram ao som do funk soul como em “Mexe Esse Pescoço”.

No início do show de Jorge Aragão, o tempo fechou e a chuva com forte ventania provocou a pane nos palcos que ficaram escuros e silenciosos. O público, que não tinha onde se esconder, se espremeu sob lonas de sinalização e o anel do estádio. Apesar de não ter durado muito tempo, os fortes ventos ameaçaram a segurança de quem tentava se proteger. Os tapumes metálicos que guardavam o backstage, por exemplo, ameaçaram desabar sobre uma turma que se protegia. Os andaimes de decoração e os telões do palco se deslocaram, perigosamente, além do previsto.
Jorge Aragão retomou o show sob luz de foco branca e som precário. Mesmo assim, foi responsável por aquecer a úmida plateia. Talvez a própria eventualidade tenha contribuído para entregar de bandeja entusiastas do samba dispostos a esquecer o momento de tensão. Jorge Aragão não quis nem saber e destilou seus clássicos que estavam, naturalmente, na ponta da língua e dos pés. O set final arrasador contou com “Do Fundo do Nosso Quintal”, “Coisinha do Pai” e “Vou Festejar”, esta última para alegria dos atleticanos que cantaram como quem comemora um título (no dia anterior o Atlético-MG teve um título nacional reconhecido pela CBF).

Um dos shows mais marcantes foi, sem dúvida, a apresentação de Rubel que conquistou a plateia cantando sobre o romance e suas consequências. O show faz parte da turnê do disco duplo Palavras, Vol. 1 & 2. Sob luz teatral e figurinos originais, Rubel presenteou a plateia com belas imagens cinematográficas que fazem jus a formação acadêmica do artista. Em momento emocionante do show (e do festival), o pianista Antônio Guerra acompanhou Rubel na sanfona para execução de “Quando Bate Aquela Saudade”. Dessa vez a chuva foi de smartphones em riste! Outro ato louvável foi a homenagem prestada ao funk carioca e a MC Marcinho, falecido naquela data, com os playbacks de “Rap da Glamourosa”, “Rap das Armas”, “Se Tá Solteira” e “Rap da Felicidade”.

A trégua das águas não durou muito e foi debaixo de chuva que o público curtiu boa parte dos shows de Urias e Lagum. Apesar do clima (e do playback), Urias fez uma apresentação acalorada e colocou os fãs para cantar e pular com um show enérgico e dedicado, que ainda contou com a participação da mineira Paige e Ebony. O Lagum, por sua vez, fez uma apresentação pautada no lançamento do segundo disco, Depois do Fim. Com uma mescla de estilos alimentando a base pop, embalaram o público com hits como a derradeira “Ninguém Me Ensinou”. A banda só não conseguiu mesmo incentivar uma roda na plateia que optou por conter a agitação, contrariando o desejo e expectativa do vocalista Pedro Calais.

Com atraso de aproximadamente uma hora, o Sarará recebeu sua grande atração: Marisa Monte, que entrou escudada por sua banda de alto quilate: Dadi (baixo, teclado e guitarra), Davi Moraes (guitarra), Pupillo (bateria), Pretinho da Serrinha (percussão, cavaquinho e voz), Chico Brown (teclado, guitarra, baixo e voz), além do trio de metais.
Com figurino cintilante e presença singular, o show teve abertura com a singela “Pelo Tempo que Durar” (2006) que evoluiu para “Portas”, música que batiza seu último trabalho. Marisa fez o chamado “show de festival”, revisitando sua obra por inteiro como bem ilustra o medley “Elegante amanhecer / Lenda das Sereias, Rainha do Mar” que conecta os sambas presentes nos discos Portas (2021) e MM (1989). Deste intervalo temporal figuraram os grandes sucessos de todas as fases como “Vilarejo” (2006), “Ainda Bem” (2011), “Beija Eu” (1991) e “Não Vá Embora” (2000).

Das participações do festival, a de Arnaldo Antunes (que visitou BH recentemente ao lado dos Titãs) foi a mais contundente e rendeu cinco músicas ao lado de Marisa Monte. Arnaldo foi convidado inicialmente para a óbvia “Alta Noite” (1994), que marca de certa forma o início da parceria com Marisa. Na sequência, “Paradeiro” (2001) e “Velha Infância” (2002), celebraram o aclamado disco branco ao lado de Carlinhos Brown. Antes de encerrar o show que coroou o lineup do festival, Marisa Monte chamou de volta a voz inconfundível de Arnaldo para “Amor I Love You” (2000) e “Já Sei Namorar” (2002).

O Sarará encerrou dentro da janela de horário permitida e o público deixou a esplanada do Mineirão com o eco do talento e poética de uma das vozes femininas mais relevantes da música popular brasileira e cuja qualidade da apresentação acabou por redimir, parcialmente, as mazelas do evento.
Conclusão
Com um lineup que não chamou atenção, especialmente se comparado às edições anteriores, o Sarará tem méritos em conciliar uma programação diversa que privilegia a presença feminina e artistas almejados pelo público-alvo do evento. A programação do palco Paredão, por exemplo, se destacou pela presença de grandes nomes da cena hip hop como o rapper e ator MC Cabelinho; MC Rick, representante do funk de Beagá e as irmãs Tasha e Tracie. Até mesmo as ações de ativação de patrocínio conversaram muito bem com o perfil desta audiência.

Infelizmente, a violência praticada por um grupo de mal-intencionados manchou a experiência de quem estava ali para se divertir e coibir esse tipo de ação, pelo visto, fugiu ao alcance da organização. Em tempo, o Sarará soltou uma nota pós-evento solidarizando com as vítimas, explicitando a atuação dos pares e reiterando o compromisso com a segurança a cada edição do festival.
Avaliação Final

Com lineup econômico, o Sarará não atraiu grande público ao Mineirão. Apesar de conhecer os riscos, também não conseguiu atuar de modo a garantir o bem-estar de quem foi ao evento. A chuva que caiu durante o festival só fez agravar o desconforto e insatisfação geral. Ainda assim, é necessário mencionar a manutenção da programação nos palcos principais e as grandes performances que agradaram quem não sofreu diretamente com os problemas mencionados.
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